Dez medidas salvadoras. Serão mesmo?

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira

O reconhecimento de que a chamada Operação Lava Jato tenha, sem embargo de seus excessos e desvios, prestado inestimável benefício à necessária punição dos corruptos é indiscutível. Referi-me à punição e não mencionei o termo combate. Com efeito, o combate ao crime, de um modo geral, se dá com o ataque às suas causas, para evitá-lo. A punição, que é imprescindível, se dá pós-crime e sua eficácia como elemento inibidor é praticamente nenhuma. O corrupto, ou qualquer outro criminoso, em regra, não se intimida com a punição alheia e por vezes nem com a própria. Pena não evita crime. Prisão não evita nova prisão. A prova provada é que 75% dos encarcerados já foram hóspedes de nossas cadeias.

Portanto, não se diga que as dez medidas (do Ministério Público) são necessárias para o “combate” à corrupção, pois para um eficiente combate é fundamental que sejam atingidas as causas. A criação de sistemas que dificultem sobremodo a prática de ilicitude contra o erário, bem como a adoção de uma consciência ética de respeito absoluto ao bem público pela sociedade, em especial, e pela classe política, em particular, são situações que atingirão diretamente as causas, e não os efeitos da corrupção, como ocorre com a punição.

Deve ser observado que tais medidas são genéricas, não se dirigem exclusivamente a determinado tipo penal. Atingirão todos os delitos e todos os acusados, não só de colarinho branco.

Por outro lado, as dez medidas também não se apresentam como indispensável condição à punição dos corruptos, pois a Lava Jato, sem que as medidas propostas estivessem em vigor, como ainda não estão, mostrou- se eficiente no cumprimento de seu desiderato punitivo. Centenas de pessoas já foram investigadas, acusadas, condenadas, estão cumprindo pena e muitas optaram pela delação premiada.

Apregoa-se que mais de 2 milhões de pessoas aderiram ao projeto de implementação das medidas. Pergunta-se: embora algumas tenham formação jurídica, a maioria absoluta é jejuna em Direito e por tal razão tanto apoiam medidas jurídicas como poderiam apoiar, por exemplo, propostas que versem sobre modificações das normas técnicas de engenharia ou sobre a adoção de novas técnicas cirúrgicas. Aderiram ao projeto simplesmente porque acreditaram no que lhes foi passado como verdade absoluta: as medidas são indispensáveis para o “combate” à corrupção.

Outra observação se faz necessária. Os autores das medidas, sem uma clara explicação, retiram do juiz o poder de avaliar e de julgar a legalidade e a procedência de certas instrumentos jurídicos, pois o projeto de antemão impede a sua utilização em casos determinados.

O exemplo marcante é o do habeas corpus, sagrado instrumento de defesa da liberdade que terá sua abrangência e sua efetividade substancialmente restringidas. É lamentável, porque esse instrumento constitucional possibilita levar aos tribunais os abusos praticados contra qualquer cidadão, em especial contra a população mais pobre, diariamente vítima do arbítrio e da truculência policiais.

O habeas corpus está permitindo que os pobres cheguem aos tribunais superiores. Os alegados abusos em suas impetrações deverão ser coibidos pelo Poder Judiciário. Deixem o habeas em paz. Qualquer um de nós poderá precisar dele, até os que não nutrem por ele grande simpatia.

Mas, indiscutivelmente, a joia da coroa das medidas é a admissão da prova ilícita. Tenho certeza que haverá um abalo, um choque entre juristas do mundo todo, ao ser divulgado que no Brasil do século 21, não nos referimos à época da Inquisição, toda a doutrina construída por séculos sobre a proibição de utilização de provas ilegais ruiu por terra. Que dirão os americanos, que de forma vigorosa não só proíbem – como tantos outros países – a prova ilícita, mas também o construíram a teoria dos frutos da árvore podre? Vale dizer, prova originária de prova ilícita ilícita também o é.

Igualmente ficarão estupefatos os doutrinadores espanhóis, germânicos, portugueses, italianos; etc., etc., que deram preciosa contribuição à construção de um Direito Penal garantista, em prol da liberdade e da pena justa, contra os abusos do Estado. Como coibir os excessos punitivos, se a prova obtida de forma ilegal terá valor, desde que haja boa-fé?

Invasão de casas para obter provas, prisões ilegais, quebras de sigilo, busca e apreensão, condução coercitiva e tantas outras agressões aos direitos individuais poderão ser perpetradas e não passarão pelo crivo do Poder Judiciário. A validade da prova ficará a cargo de quem a obtiver, bastando declarar ter agido de boa-fé.

É necessário que se indague e que alguém responda: o que é a boa-fé? De quem a boa-fé? Sua presença será verificada antes ou depois de a prova ilegal ter sido colhida? Quem vai fazer essa avaliação?

Uma última questão: boa-fé consistente em não saber da ilicitude da prova, ou boa-fé apenas quanto aos seus objetivos?

Parece-me ser a boa-fé quanto às finalidades da prova, isso porque parece não se querer criar embaraços às condutas investigativas. O desiderato final, qual seja, obter provas para acusar e punir, justifica quaisquer excessos ou ilegalidades. Aí reside a boa-fé.

Na realidade, estamos assistindo a uma perigosa escalada punitiva, pela qual se imagina, enganosamente, conseguir pôr fim à corrupção, e em seu nome garantias e direitos poderão ser violados. Essas características nos aproximam perigosamente do autoritarismo judiciário.

A antítese do autoritarismo judiciário é a dialética processual, o contraditório, a oposição, a ampla e livre discussão de ideias e de propostas, incluídas as dez medidas, exercidos quer dentro do processo, quer no plano do pensamento jurídico, e que refletem a democracia que deve reger o sistema judiciário.

Nesse sentido, para a manutenção do sistema judiciário democrático é imprescindível o reconhecimento de que todos nós, por sermos humanos, estamos sujeitos a erros e a acertos e, portanto, nenhum de nós é detentor da verdade.

Fonte: O Estado de S. Paulo